Há 102 anos, Filadélfia fez um desfile que contaminou milhares de cidadãos.
No verão de 1918, enquanto a Grande Guerra rugia na Europa, a cidade organizou um espetáculo para ajudar no esforço de guerra, vendendo bônus e melhorar o moral.
1918
Esforço de Guerra
Por todo o país, desfiles como a “Liberty Loans Parade” visavam vender bônus de guerra do governo para financiar a campanha na Europa.
Além da óbvia importância, tais “bonds” eram vistos como uma maneira de demonstrar patriotismo pelos que não iriam se alistar.
Longe de ser a potência mundial que conhecemos, em 1918 os Estados Unidos eram um país que só recentemente concluíra sua expansão territorial, e recebia enorme influxo de imigrantes.
Para muitos, ajudar financeiramente as tropas não era somente dever cívico; vencer a Guerra contra os “Hunos” garantiria a liberdade para o país de seus pais e avós.
Liberty Loans Parade
Em 28 de setembro, cerca de 200.000 pessoas lotaram a Broad Street, enquanto o desfile de 3 km passava. Os expectadores foram expostos em massa ao contágio letal da chamada “Gripe Espanhola”, designação de uma misteriosa epidemia noticiada por Madrid.
Para a cidade, o resultado foi rápido e mortífero. Dois dias após o desfile, O diretor municipal de Saúde Pública Wilmer Krusen anunciou: “A epidemia está agora presente na população civil, e assume-se ser o tipo encontrado em estações navais e acampamentos militares.“
Após 72h do desfile, todos os leitos dos 31 hospitais da cidade estavam ocupados. Na primeira semana, 700 mortos; na segunda, 2.600; até 2 de novembro, morreriam 12.162.
A cidade foi bloqueada. Em 3 de Outubro, fecharam-se espaços públicos – incluindo escolas, igrejas, teatros e bares. Mas a calamidade não descansava.
Hospitais lotados e os necrotérios não davam conta da demanda crescente. Famílias tinham que cavar covas para seus falecidos e faltavam caixões.
Prelúdio
Os primeiros registros dessa forma de gripe altamente virulenta surgiram em março de 1918, enquanto milhões se alistavam ao serviço militar.
Testemunhos de uma doença fatal vieram do Kansas, onde recrutas estavam agrupados em Camp Funston. Vários deram entrada na enfermaria com uma tal “grippe”.
Em carta datada de 29 setembro 1918, publicada em 1979 no British Medical Journal, Prof. N.Roy Grist, médico de Glasgow descreveu o impacto da infecção: “No começo, parece ser um ataque comum de “la grippe”. No hospital, rapidamente desenvolvem pneumonia do tipo mais agressivo que jamais se viu. Duas horas depois, começam manchas nas faces, e poucas horas depois percebe-se cianose (pele azulada por falta de oxigênio) extendendo-se das orelhas por todo o rosto. É uma questão de horas então até a morte vir, e é somente uma luta por ar até o sufocamento. É horrível.“
Um efeito bem documentado do vírus de 1918 era o rápido e severo dano pulmonar. Vítimas apresentavam pulmões repletos de fluido, assim como pneumonia severa e inflamação do tecido pulmonar.
A mortalidade era alta nos menores de 5 anos, nos entre 20-40 anos, e nos acima de 65 anos de idade. A alta mortalidade em pessoas saudáveis era uma característica única desta pandemia.
Em 2004, Dr. Terrence Tumpey, PhD reconstruiu o vírus da “Gripe Espanhola” a partir de tecido pulmonar extraído de corpos preservados pelo permafrost (gelo) no Alaska e comparou-o a versão geneticamente misturada ao da gripe sasonal, medindo a carga viral após 12, 16 e 24h pós infecção. O vírus de 1918 replicou-se produzindo uma carga viral até 50x superior.
No estudo, o autor e seus colegas observaram “a constelação de todos os seus oito genes juntos o tornam um vírus excepcionalmente virulento”.
Nenhum outro vírus da influenza humana testado foi assim virulento. Deste modo, o vírus de 1918 foi especial – um produto mortal único da natureza, evolução da interação de pessoas e animais.
Trajetória
Em maio de 1918, um milhão de soldados americanos desembarcaram na França, e a influenza logo se espalhou pela Europa.
Logo, mais de 200.000 soldados franceses e britânicos estavam doentes demais para lutar. A ofensiva alemã parou em Junho pelo mesmo motivo.
A taxa de mortalidade na primeira onda era relativamente baixa, mas a segunda, que começou em Boston no início do outono, era muito mais severa. O vírus parece ter mutado durante o verão.
Arsenal terapêutico
Em fevereiro de 1917, a patente americana da alemã Bayer sobre a aspirina expirou, abrindo lucrativo mercado a muitos fabricantes.
A Bayer reagiu através de propaganda, destacando a pureza do produto da marca.
No outono de 1918, frente a uma doença mortal disseminada sem cura conhecida, o Serviço de Saúde Pública e a Marinha recomendavam aspirina como tratamento sintomático.
O Jornal da Associação Médica Americana sugeria dose de 1.000mg a cada 3h, o equivalente a quase 25 pílulas de 325mg em 24h.
Isto é quase o dobro da dosagem considerada segura hoje.
Dados farmacocinéticos, indisponíveis em 1918, indicam que as dosagens recomendadas para “Influenza Espanhola” predispõe a severa toxicidade pulmonar.
Há interessante estudo cuja hipótese é que tal tratamento resultava em toxicidade e edema pulmonar, contribuindo para a incidência e severidade de Síndrome do Desconforto Respiratório Agudo, infecção bacteriana subsequente e mortalidade geral.
Além da aspirina, recomendava-se sais de Quinina (anti-malárico, extraída da casca da árvore Cinchona) e Vick’s VapoRub.
Pesquisas Científicas
Em 1892, Pfeiffer determinou que a bactéria Haemophilus influenzae era o agente causador da influenza. A pandemia deu aos cientistas a oportunidade de confirmar ou refutar o trabalho de Pfeiffer.
A maior parte das culturas de secreções coletadas em Camp Lewis apresentaram Pneumococcus tipo IV. Concluiu-se que “a recente epidemia em Camp Lewis deve-se a infecção aguda do trato respiratório e não devido ao Bacillus influenzae“. Estes achados, junto com outros, sugeriram à maioria dos cientistas que o Bacillus de Pfeiffer não era o causador da influenza.
Cientistas trabalhavam arduamente para encontrar o agente etiológico da pandemia. Entretanto, ainda estavam conceitualmente atrasados na definição de um vírus: o tamanho era a única distinção entre um vírus e uma bactéria.
Os Preguiçosos
Muitos métodos foram usados para evitar a disseminação: fechar escolas; usar máscaras; evitar aglomerações; não tossir ou espirrar próximo a pessoas. E não cuspir.
As autoridades de Saúde publicavam estas diretrizes de vários modos. Na Filadélfia, avisos “cuspir espalha a morte“. Nos estados do Oeste, considerava-se usar máscara um dever patriótico.
Desde o início da 1a onda, tais medidas não foram aceitas. Em 18 de Janeiro, “slackers” organizaram-se, formando em San Francisco a “Anti-Mask League”.
Em outubro de 1918, o San Francisco Chronicle advertia “o homem, mulher ou criança que não usa máscara é um perigoso preguiçoso (slacker)” – em referência ao termo “slacker” usado para quem não ajudava no esforço de guerra.
O argumento era que o uso obrigatório de máscaras feria os direitos e liberdades individuais. O resultado foi aumento do número de casos em Janeiro de 1919, e o uso de máscaras foi reforçado.
O show deve continuar
Enquanto a cidade de Filadélfia preparava seu desfile, o diretor municipal de Saúde Pública Dr.Wilmer Krusen permitiu que a parada fosse realizada, indo contra diversas cartas de médicos que exigiam o cancelamento da parada.
A atitude das autoridades era considerar a pandemia um “resfriado à moda antiga ou gripe”. A imprensa local diminuía a severidade da doença: “O que estão tentando fazer, assustar a todos? O medo da inflenza está criando pânico.. Portanto, fiquem longe do assunto e falem de coisas alegres – saúde, por exemplo, ao invés de doença.” – Editorial do Philadelphia Inquirer, 5 de Outubro, 1918.
A Grande Guerra era uma preocupação muito maior, dominando as notícias e consciência coletiva. Apesar de o conflito estar prestes a terminar, a cidade foi encarregada de arrecadar $259 milhões para a guerra na Europa. Para isto, a prefeitura precisava que a parada acontecesse.
Em St.Louis
A cidade de St. Louis teve um oficial de Saúde energético e visionário, Dr. Max Starkloff. Em 21 de setembro, alertou os cidadãos a evitar multidões.
Apoiado pelo Prefeito, Dr. Starkloff foi rápido em implementar o fechamento de lugares como escolas, teatros, praças, igrejas e aglomerações. Cancelou o desfile da cidade, reconhecendo o perigo em reunir multidões.
Suas ações são creditadas como as primeiras instâncias do distanciamento social. Além de levar St. Louis a ter uma das menores taxas de mortalidade por influenza no país, sua intervenção serviu para efetivamente “achatar a curva“.
Em 18 de outubro, Krusen na Filadélfia avisava que a epidemia “estava acabando”; no dia 19, Starkloff orientava as lojas de St. Louis a fechar ainda mais cedo.
Neste dia, mais 4.597 mortes na Filadélfia discordavam de Krusen, que reabriu a cidade em 30 de outubro.
Em St. Louis, quando as infecções aumentaram novamente em novembro, devido ao dia do Armstício, as restrições foram reimpostas e gradualmente retiradas até o final de Dezembro. As escolas só reabririam em Janeiro de 1919.
Ao discutir a história da trágica epidemia de influenza de 1918, St.Louis aparece como referência de cidade modelo. Pela ação rápida e mantida por seus líderes, somente 5 cidades dos EUA tiveram taxas de mortalidade mais baixas.
2020
Estamos ingressando na segunda onda da pandemia de coronavírus. Personagens em posições de liderança, comentários semelhantes, tratamentos equivocados, decisões parecidas, resultados iguais.
Dr. Krusen sabia dos riscos envolvidos quando permitiu que a parada de 1918 acontecesse, mas escolheu atender a interesses políticos e econômicos da época.
Tendo em vista a posição das autoridades, decisões sobre vacinas, aglomerações, festas e inobservância às recomendações da OMS, este é um bom momento para relembrarmos o custo de decisões políticas míopes durante a pandemia de 100 anos atrás, que mostrou-se mais mortal que a I Guerra Mundial.
Ricardo B Fortuna é Osteopata, fisioterapeuta, acadêmico de Medicina e certificado pela School of Communication Arts em Raleigh-NC, USA.
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